quinta-feira, fevereiro 26, 2009

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"Les beaux esprits se rencontrent."
Voltaire

Diferença, diferente?

A diferença está no nós. Não em mim. A diferença é o curto espaço entre nós. No que se passa e não em quem se passa. Num conjunto de formas. Numa silhueta. No que não se explica. No que verdadeiramente é. O Abstracto não tem forma. Existe.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Voar Baixinho

Leva-me em voo raso o meu pensamento que tem - hoje - só um sentido. Diferente na forma e no contorno, de traço leve e fluído. Contínuo. Alucinante sem ser ansioso, transparente e quase invisível - parece seguro. Sente-se como deve sentir-se uma nuvem em mãos geladas. Suave. Um raso flutuante que me envolve quase sem me tocar, que se queda sem se notar até ao momento em que o chão deixa de estar ao alcance da minha vontade. Lento, em crescendo, um voo sem tempo. Sem espaço. Um voo sem asas que rasga sorrisos. Silencioso, sem palavras, um mudo que diz tudo...

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A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.
Fernando Pessoa

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

In a Manner of Speaking...

Desportos Radicais by João Paulo Cotrim

Eu não tinha prancha de surf. Também não havia praia, só uma rua a descer. A vida está cheia de histórias com ruas a descer. Nunca tive equipamento de escaladas. A rua fazia fronteira com umas terras também chamadas montes, mas nada que justificasse cordas e mosquetões. As ruas que descem dão sempre para lugares que sobem. Ali e então não havia eu mas nós, vários grupos de nós que se cruzavam de mil maneiras noutros tantos nós atados e desatados. Nós vivíamos com os pés ora no alcatrão ora no granito, a melhor das terras para receber raízes. Naquele vale escuro, que seria Lisboa se Lisboa tivesse montes e ruas que descem, surgiram os mais absurdos dos desportos radicais. Morreram com a nossa infância. Daí a ignorância geral e, aquela que me dói mais, a do comité olímpico acerca do pingue-pongue-em-mesa-de-cozinha-de-fórmica-e-esquinada ou do futebol-de-cabeça-em-vãos-de-escada-com-mais-de-dez-degraus. Cada modalidade sobrevivia pouco ao frenesim de uma época. Assim aconteceu com o pingue-pongue até por carecer de redes e raquetes e bolas, mínimos que não eram óbvios. A mesa esquinada, para quem não saiba, é terreno movediço: não segura a rede com propriedade – o que pede atenção redobrada; os campos não são uniformes – exigindo complicados cálculos geométricos; e os rebordos imprimiam movimentos de funâmbulo nas massacradas bolas. Só com olhos de águia e rins de malabarista se conseguia puxar uma bola que acabava humilhada no meio da loiça. Os golpes de rins voltavam a ser de utilidade no futebol-de-cabeça-em-vãos-de-escada-com-mais-de-dez-degraus. Mudava-se de campo aos dez ou mais cedo se aparecesse a vizinha do rés-do-chão. Sem drama que havia muitas portas. A chicha estava por regra proibida de tocar no chão encerado com sabão amarelo. O jogador de baixo estava altamente penalizado, mas era-o à vez. Isto da gravidade nas ruas que descem é lixado. Pagava-se o preço com a elegância das elevações e dos movimentos de cabeça. A gravidade vence-se pela dança. Tudo se ganha com uma corridinha. As corridas tratavam de preencher os intervalos entre as modas. Antes dos carrinhos matchbox nos paralelepípedos das bordas dos passeios foi a glória das caricas-com-casca-de-laranja-quem-cair-volta-atrás. Não tinha que saber: os carrinhos desciam por si, na carica tornava-se imperativo o piparote, em geral, com o indicativo embora um ou outro rebuscado usasse o polegar. A sujidade fazia parte do jogo, aliás como sempre. Período de duração anormal, foi o da fórmula 1 em carrinhos de esferas. Assaltaram-se as oficinas de automóveis com pedidos de rolamentos a ser tecnicamente aplicados em ripas ou mesmo paus. O semi-eixo traseiro era fixo, o dianteiro movia-se com a ajuda dos pés-travões e de uma corda-volante. Sobre ambos assentava uma tábua mais larga, cabina onde se sentava o piloto equipado com suor. A descida da rua produzia ruído industrial capaz de acordar cidades moribundas e a prova disso estava na velha surda do terceiro. Bem que ela gritava as nossas culpas no avanço da morte em direcção ao marido doente. Havia quantidade e variedade de velhos e doentes, mas nenhum se passou por causa dos desportos radicais. Alguns carrinhos eram de marca, como a muito popular estrela da Mercedes, e só esses davam os cem à hora que a organização exigia. A meta oficiosa era na curva e à molhada. As ruas que descem são perigosas. Nada de mais, apenas inclinação. Os montes subidos também continham a sua dose de risco, cenário exacto para o Castelo. Sustenha-se a respiração. Uma navalha esculpia na terra como uma tatuagem aquele exemplo de clássica arquitectura militar. A conquista havia tinha que se rasgar com percursos unidos pelas armas que se espetadas na terra. Contavam apenas as que ficavam hirtas e vibrantes. Grande aventura, ter uma navalha na mão no meio dos montes para a atirar com força e gritos. Os gritos são indispensáveis. Nem tínhamos que jogar bruto, mas aí aliviava bastante. Contra um árbitro, que segurava a cabeça do primeiro e por isso se chamava mãe, um grupo enfileirava-se de costas dobradas, cabeça debaixo das pernas do da frente, enquanto o outro grupo saltava de joelhos nas costas. Quem não aguentasse, perdia. Quem não aguenta, perde. Não é diferente fora das histórias: gritar ajuda. Doía mais o círculo dos calduços por causa do silêncio imposto. No meio de uma apertada roda de estátuas proibidas de mostrar os dentes alguém se mexia como doido. Se parasse oferecia a nuca à fortíssima palmada anónima. Se vislumbrasse o autor, caía ele no buraco negro. Não era fácil trocar de abismo. Mais radical só mesmo a porrada, mas nas ruas que descem andar à porrada requeria ou muitas regras ou regra nenhuma. “Cinco decilitros”, tal o nome da pequena peça representada na sequência de uma provocação grave e respectivos empurrões gritados. Alguém tomava a iniciativa de cuspir para o chão. Nas ruas que descem, cuspir era tão indispensável como gritar. Dos contendores aquele que pisasse primeiro a bisga, estava obrigado a oferecer os tais cinco decilitros ao outro. Consistia o gesto em lamber os cinco dedos da mão e, suprema humilhação, tocar com essa humidade o rosto do parceiro. Ficava, então, do lado dele a obrigação do primeiro murro. Por essa altura, entediados com o ballet, choviam sugestões radicais logo ali aceites. Nas ruas que descem é grande o poder de sugestão.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Às vezes...

...há coisas que quando surgem muito naturais assustam, que quando parecem mais simples que outras metem medo, não é o caso. Há momentos que acontecem fáceis, instântaneos e sem ensaio, só porque sim, sem mais razão, sem origem ou pano de fundo, sem antecedentes, sem justificação ou atrito, acontecem simplesmente, imprevistos. Há coisas que não são explicáveis e apesar da necessidade inata de justificar, balizar ou racionalizar todo e qualquer acontecimento, às vezes não apetece, não é preciso. Há coisas que são naturalmente simples, são como são e o porquê é secundário... ou então não existe.

Her Morning Elegance

domingo, fevereiro 08, 2009


Parecia há 10 anos, no Indústria

O som é o mesmo e as pessoas também. Revivem-se as tais dinâmicas adormecidas, recriam-se empatias, usam-se e abusam-se de algumas confianças, assaltam-se arrecadações e afogam-se mágoas inexistentes em brut champagne, dançam-se sevilhanas com toques de tango ao som de pop rock, revêem-se caras desaparecidas da memória, reanimam-se amizades e consolidam-se outras, abrem-se as perspectivas e viram-se os shots e as unhas ao sabor de Tom Collins, proporcionam-se caminhadas desnecessárias só porque sim, criam-se estatutos e máscaras caídas, surgem combinações de viagens e jantares e cafés e mais outras tantas de copos e concertos, há quem veja o que não quer e quem deixe de fazer o que gostava, há uns que desaparecem sem rasto outros que aparecem de repente, fecham-se janelas para o rio e abrem-se portas do fundo. Há quem fuja da polícia e quem espere que eles fujam... parecia há 10 anos, no Indústria.