Eu não tinha prancha de surf. Também não havia praia, só uma rua a descer. A vida está cheia de histórias com ruas a descer. Nunca tive equipamento de escaladas. A rua fazia fronteira com umas terras também chamadas montes, mas nada que justificasse cordas e mosquetões. As ruas que descem dão sempre para lugares que sobem. Ali e então não havia eu mas nós, vários grupos de nós que se cruzavam de mil maneiras noutros tantos nós atados e desatados. Nós vivíamos com os pés ora no alcatrão ora no granito, a melhor das terras para receber raízes. Naquele vale escuro, que seria Lisboa se Lisboa tivesse montes e ruas que descem, surgiram os mais absurdos dos desportos radicais. Morreram com a nossa infância. Daí a ignorância geral e, aquela que me dói mais, a do comité olímpico acerca do pingue-pongue-em-mesa-de-cozinha-de-fórmica-e-esquinada ou do futebol-de-cabeça-em-vãos-de-escada-com-mais-de-dez-degraus. Cada modalidade sobrevivia pouco ao frenesim de uma época. Assim aconteceu com o pingue-pongue até por carecer de redes e raquetes e bolas, mínimos que não eram óbvios. A mesa esquinada, para quem não saiba, é terreno movediço: não segura a rede com propriedade – o que pede atenção redobrada; os campos não são uniformes – exigindo complicados cálculos geométricos; e os rebordos imprimiam movimentos de funâmbulo nas massacradas bolas. Só com olhos de águia e rins de malabarista se conseguia puxar uma bola que acabava humilhada no meio da loiça. Os golpes de rins voltavam a ser de utilidade no futebol-de-cabeça-em-vãos-de-escada-com-mais-de-dez-degraus. Mudava-se de campo aos dez ou mais cedo se aparecesse a vizinha do rés-do-chão. Sem drama que havia muitas portas. A chicha estava por regra proibida de tocar no chão encerado com sabão amarelo. O jogador de baixo estava altamente penalizado, mas era-o à vez. Isto da gravidade nas ruas que descem é lixado. Pagava-se o preço com a elegância das elevações e dos movimentos de cabeça. A gravidade vence-se pela dança. Tudo se ganha com uma corridinha. As corridas tratavam de preencher os intervalos entre as modas. Antes dos carrinhos matchbox nos paralelepípedos das bordas dos passeios foi a glória das caricas-com-casca-de-laranja-quem-cair-volta-atrás. Não tinha que saber: os carrinhos desciam por si, na carica tornava-se imperativo o piparote, em geral, com o indicativo embora um ou outro rebuscado usasse o polegar. A sujidade fazia parte do jogo, aliás como sempre. Período de duração anormal, foi o da fórmula 1 em carrinhos de esferas. Assaltaram-se as oficinas de automóveis com pedidos de rolamentos a ser tecnicamente aplicados em ripas ou mesmo paus. O semi-eixo traseiro era fixo, o dianteiro movia-se com a ajuda dos pés-travões e de uma corda-volante. Sobre ambos assentava uma tábua mais larga, cabina onde se sentava o piloto equipado com suor. A descida da rua produzia ruído industrial capaz de acordar cidades moribundas e a prova disso estava na velha surda do terceiro. Bem que ela gritava as nossas culpas no avanço da morte em direcção ao marido doente. Havia quantidade e variedade de velhos e doentes, mas nenhum se passou por causa dos desportos radicais. Alguns carrinhos eram de marca, como a muito popular estrela da Mercedes, e só esses davam os cem à hora que a organização exigia. A meta oficiosa era na curva e à molhada. As ruas que descem são perigosas. Nada de mais, apenas inclinação. Os montes subidos também continham a sua dose de risco, cenário exacto para o Castelo. Sustenha-se a respiração. Uma navalha esculpia na terra como uma tatuagem aquele exemplo de clássica arquitectura militar. A conquista havia tinha que se rasgar com percursos unidos pelas armas que se espetadas na terra. Contavam apenas as que ficavam hirtas e vibrantes. Grande aventura, ter uma navalha na mão no meio dos montes para a atirar com força e gritos. Os gritos são indispensáveis. Nem tínhamos que jogar bruto, mas aí aliviava bastante. Contra um árbitro, que segurava a cabeça do primeiro e por isso se chamava mãe, um grupo enfileirava-se de costas dobradas, cabeça debaixo das pernas do da frente, enquanto o outro grupo saltava de joelhos nas costas. Quem não aguentasse, perdia. Quem não aguenta, perde. Não é diferente fora das histórias: gritar ajuda. Doía mais o círculo dos calduços por causa do silêncio imposto. No meio de uma apertada roda de estátuas proibidas de mostrar os dentes alguém se mexia como doido. Se parasse oferecia a nuca à fortíssima palmada anónima. Se vislumbrasse o autor, caía ele no buraco negro. Não era fácil trocar de abismo. Mais radical só mesmo a porrada, mas nas ruas que descem andar à porrada requeria ou muitas regras ou regra nenhuma. “Cinco decilitros”, tal o nome da pequena peça representada na sequência de uma provocação grave e respectivos empurrões gritados. Alguém tomava a iniciativa de cuspir para o chão. Nas ruas que descem, cuspir era tão indispensável como gritar. Dos contendores aquele que pisasse primeiro a bisga, estava obrigado a oferecer os tais cinco decilitros ao outro. Consistia o gesto em lamber os cinco dedos da mão e, suprema humilhação, tocar com essa humidade o rosto do parceiro. Ficava, então, do lado dele a obrigação do primeiro murro. Por essa altura, entediados com o ballet, choviam sugestões radicais logo ali aceites. Nas ruas que descem é grande o poder de sugestão.
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3 comentários:
João Paulo Cotrim escreve extraordinariamente bem.
É sempre uma inspiração ler um trecho dele, seja na literatura infantil, seja na BD em parceria com João Fazenda (irmão do Nuno), seja num artigo jornalístico.
Muito bom!
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